Hoje, segunda-feira, o Pipismo está em festa. Atentem nestas palavras de sabedoria de João César das Neves, esse mais que tudo do Pipismo. O texto destacado a verde-bolor de iogurte é particularmente Pipista. Mas leiam o texto integral:
Está a terminar o Ano Mundial da Física, que celebra o centenário de um facto espantoso, a publicação de quatro artigos que revolucionaram a forma como vemos a matéria. Num punhado de páginas, Albert Einstein concebeu em 1905, quase de raiz, a mecânica quântica e teorias da relatividade, da relação massa-energia e do efeito fotoeléctrico.
A revolução de 1905 surgiu perante uma civilização fascinada pelo método científico. Após séculos de investigação, a humanidade considerava-se na posse de um modelo final e definitivo da realidade. De repente, essas certezas evidentes eram pulverizadas. Mas com as velhas certezas, a nova ciência perdia também a inocência. As descobertas espantosas abriam a porta a desenvolvimentos que feririam de morte a confiança nelas. O século XIX construiu-se sobre o dogma de que o progresso do conhecimento era sempre bom e proveitoso. A era nascida em 1905 veria muitos cientistas, incluindo Einstein, ansiosos por desaprender resultados desse progresso.
A ciência moderna é muito mais que um método analítico. Ocupava então o lugar de referência cultural básica. Na descrição de um dos seus mais astutos observadores, deu-se "a junção das ânsias extra-racionais que o retrocesso da religião tinha deixado errantes como cão sem dono, com as tendências racionalistas e materialistas da época, então inelutáveis, que não toleravam nenhum credo que não tivesse conotações científicas ou pseudocientíficas" (J. Schumpeter (1943) Capitalism, Socialism and Democracy, cap. 1). A passagem de serva a mestra transformou a ciência ainda mais que os artigos de Einstein.
Primeiro, ela trazia consigo uma assustadora violência, ficando ligada às maiores atrocidades que se seguiriam. Do cogumelo de Hiroxima ao napalm do Vietname, do aquecimento global aos embriões congelados e à clonagem, o deus da ciência revelou ter o poder de Zeus e a fúria de Baal sem a misericórdia de Cristo.
Não foi apenas a física a revelar-se assustadora. O "pequeno livro vermelho" de Mao garante "O Partido Comunista da China, feita uma avaliação lúcida da situação international e interna com base na ciência do marxismo-leninismo, reconhece que todos os ataques dos reaccionários, no país e no estrangeiro, têm de ser e podem ser vencidos" (cap. 7, Ousar Lutar, Ousar Vencer). A "ciência do marxismo-leninismo", a que se referia directamente Schumpeter, tal como a da "superioridade racial" nazi, arrasou muito mais que a bomba atómica.
O segundo elemento, mais preocupante ainda, foi a perda de objectividade da própria ciência. Ao subir de método analítico a ideologia doutrinal, ela viu o seu grande valor de rigor, solidez e garantia ser usado de forma tão movediça como nas demais crenças. Hoje qualquer debate tem ambos os lados a invocarem estudos científicos. Basta o argumento técnico ter consequências sociais, comportamentais ou políticas para se tornar discutível. Todos estão convencidos do impacto decisivo da própria consistência teórica, enquanto desprezam os cálculos do adversário como fúteis e ocos.
"Quando começa a vida na gestação? Esta dieta é eficaz? O casamento estável é essencial para o equilíbrio emocional? A homossexualidade é genética ou perversa? A inflação e o liberalismo são bons ou nocivos?" Estas e muitas outras perguntas tiveram as respostas mais contraditórias, sempre baseadas na elaboração teórica. Sobre elas estamos ainda mais confusos que em 1905.
Arrastada na vertigem da demagogia, a ciência complica e não clarifica as discussões. Ser "tecnicista", "economicista" passou a ser pecado. O pós-modernismo trocou boa análise por má doutrina. Assim, cresce o desprezo pela atitude racional e avança o misticismo e a magia, prosperam os charlatães e a mixordice intelectual. Estão em risco séculos de avanços do conhecimento.
Desde os artigos de Einstein, a atitude perante a ciência evoluiu ainda mais que ela. Em Oitocentos via-se o laboratório como em Setecentos se tinha visto o oratório. Novecentos descobriu-se num velório.
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